Só a lembrança está vendo, da casa não há mais nada

Hoje, quero compartilhar com vocês um tesouro que recebi de um primo, Francisco de Assis Sousa (Tiquinho), um cordel que ele escreveu em 2015, lançado pela Sociedade dos Poetas de Barbalha, repleto de lembranças nostálgicas das férias que ele passava, nos anos 70, na casa dos meus bisavós, Severino Saraiva de Sousa (Pai Senhor) e Maria Saraiva de Sousa (Mãe Maria).

O cordel, intitulado “Só a lembrança está vendo, da casa não há mais nada”, é uma verdadeira viagem no tempo. Através de suas estrofes, Tiquinho evoca imagens vívidas da casa, do quintal, dos cheiros e sons que preenchiam aqueles dias. Ele descreve com detalhes a casa alpendrada, os bancos de madeira na entrada, o curral, o pomar e até as panelas de barro. Cada verso é uma janela para um passado que, embora não tenha vivido, consigo imaginar com clareza.

Ao ler o cordel, me vi dentro da casa dos meus bisavós. Pude visualizar a longa cumeeira coberta acinzentada, os coqueiros e goiabeiras que cercavam o espaço, e até mesmo a mesa grande da sala, ladeada de cadeiras. É impressionante como as palavras podem nos transportar e nos fazer sentir parte de histórias que nos precedem.

Embora a casa não exista mais, as memórias e sentimentos que ela gerou permanecem vivos. O cordel é um lembrete da importância de valorizar nossas histórias familiares e de manter viva a memória de quem nos antecedeu.

Convido vocês a lerem o cordel que ele escreveu. Espero que, assim como eu, vocês sintam a magia das lembranças e a conexão com nossas raízes.

O tempo que tudo leva
E traz de qualquer história
Deixando em nossa memória
O sentimento preserva
Quando o pensar se eleva
Enquanto em nós permanece
A gente nunca esquece
Cada cena registrada
Só a saudade está vendo
Na casa não tem mais nada.

Cada vez fica mais vivo
O espaço sem cenário
Com meu olhar relicário
Sensato e regressivo
Quanto mais vejo revivo
Mesmo tudo estando ausente
O passado está presente
Onde não há mais morada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo a casa alpendrada
Antes ou depois da ladeira
Com uma longa cumeeira
E coberta acinzentada
Bem na beira da estrada
Antecipando as palmeiras
Com dois bancos de madeira
Rústicos na porta da entrada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo também a porteira
Na entrada do curral
O barreiro, o cafezal
Os coqueiros, goiabeiras
Abacateiros, jaqueiras…
Cabras enroscadas no mato
Cobra dá bote no gato
Vaca parida estressada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo as panelas de barro
Nas varas lá do paiol
De milho levando sol
Que de surpresa esbarro
Uma delas virou jarro
Na torceira de capim
Perto do pé de jasmim
Com rosas bem perfumadas
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo o barreiro bem cheio
Por detrás lá do pomar
Os patos estão a nadar
Com alegria de recreio
Flutuando assim sem freio
Rasgando raios revesos
Sob o volume represo
Das águas das enxurradas
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo a mesa grande da sala
Ladeada de cadeiras
Uma cuia farinheira
De couro uma grande mala
Em mim o silêncio fala
Encurtando a distância
Me traz no peito uma ânsia
Que de repente é frustrada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo os porcos no chiqueiro
Entrançado de cipó
Em cada vara um nó
De palmeira ou mameleiro
Lá de longe no terreiro
Na baixa a gente avista
Um galo de grande crista
Galinha no forno aninhado
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo os caixões de madeira
Para guardar o legume
Que se enchia até o cume
Quando o inverno é primeira
A pedra da lavadeira
Nas águas que serpenteia
Lambendo toda areia
Que abeirava a levada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo lá as cacimbinhas
Presente da natureza
Suspensas da correnteza
De águas puras e friinhas
Que enchiam jarras, quartinhas…
Dava gosto de se olhar
Pra sede saborear
E fica bem saciada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo a janela do oitão
Virada lá pro nascente
De lá se via à frente
Secagem de vargem e grãos
Expostas no calçadão
Também o sol da manhã
Tinha massa de carimã
Que vinha da farinhada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejos os pés de catolés
Bem ao lado do poleiro
Divisando o galinheiro
E os grandes pés de torés
Tô fraco canta o guiné
Na calçada da cozinha
Cachorro espanta a galinha
Que salta apavorada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.

Vejo a renovação
E grande contentamento
No importante evento
Do santo de devoção
Tem reza animação…
Num ambiente de fé
Lá encontrei quem hoje é
A minha mulher amada
Só a lembrança está vendo
Da casa não tem mais nada.

No meu cordel saudosista
Cheio de reminiscência
Parte de uma convivência
Viva, alegre e realista
Hoje me entristece a vista
Quando olho à paisagem
Enxergando uma imagem
Triste (Des) configurada
Só a saudade está vendo
Da casa não tem mais nada.